Thursday, May 03, 2007

Geração recibo verde

por Clara Martins

Primeiro foram apelidados de 'rasca', por serem uma geração sem ideais, quase fútil. Hoje são impedidos de pensar muito sobre o futuro, sob pena de se reverem num cenário não muito risonho.

No início eram os 'rascas'. Foi Vicente Jorge Silva que fez o favor de os chamar assim, num memorável editorial do Público - de que era na altura director - sobre um protesto que visava o aumento das propinas. Referia-se a uma geração de jovens portugueses - hoje ainda jovens mas não tanto - que considerava vazios de ideais e fúteis pelo hábito da vida sempre facilitada.


- Mas porque seriam rascas, o que os marcou e onde estão agora?

Quando eram miúdos viam todos as mesmas séries na televisão, adoravam e comoviam-se com o 'Marco'; alegravam-se com o 'Verão Azul', comiam todos as mesmas cinco marcas de bolachas disponíveis no mercado, os mesmos gelados, passavam férias no Algarve, em Benidorm, ou então na 'terra' dos pais ou avós.

Ainda se lembram de demorar um dia inteiro a chegar ao destino, do outro lado do País, a cantar e a jogar durante toda a viagem, com um piquenique pelo meio, debaixo de um frondoso pinheiro numa qualquer mata ainda por arder. Começaram a fazer reciclagem nesses piqueniques, quando diziam aos avós e ainda aos pais que era feio deixar aqueles restos para trás.

Assistiram ao advento do hipermercado, que lhes mudou a vida, enchendo-a de variedade, nos dias de romaria à grande loja e, mais tarde, ao enorme shopping.

Começaram a vestir Zara quando ainda era diferente e tornaram-na uniforme. É lá que ainda se revovam camisolas de lã já cheias de borboto a cada inverno, e se reforma o roupeiro com as novas tendências, porque a carteira não permite outras aventuras.

Ainda leram muitos livros, e continuam a folhear, uma mão na obra, outra no rato.

A Internet só surgiu nas suas vidas quando a maioria já tinha ultrapassado a 'fase do armário', não puderam, como agora, esclarecer as suas dúvidas existenciais através do Google e, apesar de não terem lá muitos ideais, inauguraram o conceito 'festival de verão', habituados à natureza, em contacto com a qual brincavam quando eram miúdos, alheios à Playstation que só se popularizou quando já eram jovens adultos.

Depois veio a universidade, e o estatuto de estudante vai-se ainda prolongando ao longo da vida desta gente que nunca terá uma reforma e que vive entre o recibo verde e a bolsa de investigação.

Normalmente tudo começa com um estágio profissional, a luz ao fundo do túnel para quem acaba o seu curso. É o primeiro passo no mundo do trabalho, a primeira experiência e às vezes única na área em que se estudou.

Ser bem sucedido é, para esta geração, trabalhar na área que se elegeu para estudar, não fazer muitas vezes o caminho com destino ao Centro de Emprego da área de residência, que está em constante mutação, e ter um salário que nunca ultrapassa (nos casos de maior sucesso) os mil euros.

Estão agora na casa dos trinta, mas a maioria continua a viver como se tivesse 20. A casa dos pais é sempre uma boa (e económica) alternativa, mas a casa partilhada continua a ser uma opção comum. A vida comunitária de estudante prolonga-se no tempo, e vai adiando decisões de estabilidade.

Nunca fazem greve porque os seus empregos são demasiado precários e habituaram-se a ser pouco reinvidicativos. Talvez pelo trauma de voltarem a ser chamados rasca de cada vez que se lembram de manifestar insatisfação por algo que não é considerado um ideal 'maior'.

Vivem sem saber se terão trabalho no mês que vem, fazem um novo tipo de 'biscate'. Entre o recibo verde e a bolsa de investigação, sorte têm aqueles que conseguem um contrato - a termo, é claro - e, já agora, por mais de um ano.

O 'pessoal da bolsa de investigação' chega aos trinta (e tal) sem nunca ter feito um único desconto para o Estado, apesar de trabalhar há anos, sem nunca ter recebido um subsídio, sem quaisquer regalias sociais. É um estatuto cada vez mais comum que pode durar anos.

Não conseguem comprar casa e já se habituaram ao cartão de crédito, aliado precioso para os últimos dias do mês.

Não fazem poupanças e vivem no limbo entre a casa alugada, a viagem de autocarro ou, num estádio já mais complexo, a cada vez mais comum relação à distância. Cada um tem de migrar para onde há trabalho, o que significa tantas vezes ver a vida em comum reduzida ao fim de semana.

Há muitos designers nesta geração sem amanhã. Os que podem ficar por cá com toda a segurança são médicos ou informáticos. Os outros todos, até os engenheiros civis, outrora tão solicitados, fogem cada vez mais para outras paragens.

No dia do trabalhador, lembrei-me de generalizar sobre uma geração com razões para reinvindicar. Pouco valorizado, o seu trabalho é precário e mal remunerado. São interessados e competentes, mas ainda assim têm muita dificuldade em construir uma carreira interessante.

Há 201 anos, a 1 de Maio de 1886, centenas de milhares de pessoas reivindicaram uma redução das horas de trabalho nas ruas de Chicago. Essa manifestação prolongou-se por dias e da batalha entre manifestantes e polícias resultaram vários mortos, de ambos os lados.

O 1º de Maio ficou então marcado pela luta por oito horas de trabalho diário e foi chegando aos vários países onde hoje continua a celebrar-se o Dia do Trabalhador.

- Mas o que significa agora este dia? Se tivessem coragem de falar, qual seria o grito de guerra desta geração outrora 'rasca' e hoje periclitante na corda bamba da empregabilidade?


PS: foi isto que aconteceu a minha geracao de que apelidavam de rasca?

1 comment:

Sofia said...

Belo texto! Sem ficção. Felizmente nós lá nos vamos safando...ainda que à distância.